2 de agosto de 2013

Currículos extensos


Estava na sala de aula, num papo trivial com o professor após o intervalo do almoço, quando uma das colegas entrou no momento em que citava rapidamente minha rápida experiência como enfermeira, ou melhor, técnica em enfermagem. “O quê? Mais essa? Essa menina é uma surpresa a cada aula. Três casamentos, câncer de mama, trabalhou em TV, é escritora, e agora diz que foi enfermeira? Ô, o que você não fez? Que vida movimentada, hein?!”.

Gargalhada geral à parte, para quem olha com distanciamento pode parecer uma existência no mínimo diferente, de alguém sem parada, sem rumo, insatisfeito, inquieto, incompreensível, até mesmo não confiável. Logo que me formei jornalista um amigo próximo me chamou de precoce, pois me casara aos dezenove, concluíra a graduação antes de completar vinte e um e, a esta altura, já separada. “Vida começando frenética”, disse-me.

O privilégio não é só meu. Toda pessoa traz riqueza no currículo. Se não sabemos, pode ser por desinteresse nosso ou porque poucos se permitem divulgar o histórico pessoal. No meu caso, preservados os pormenores, não importa que saibam o que fui ou o que deixei de ser. Experiência de vida é história, seja de quem for, e se as histórias alheias me são atraentes, não escondo a minha. Não de caso pensado.

Boas são as surpresas com os currículos extensos que descubro. Soube, por exemplo, que um puta profissional que conheço, hoje de vida financeira confortável devido à atividade que exerce com qualidade há duas décadas, teve uma infância pobre, filho único de uma mulher sofrida, que passou sufoco para criá-lo. Hoje, mesmo na condição em que se encontra, mantém a simplicidade e trata a todos com educação e delicadeza. Pra mim, antes de ter acesso a tais informações, era apenas um homem lindo e elegante, além de muito competente no ofício que escolheu e no trabalho que executa.

Na barbearia, um cliente que falava sobre sua rotina interpelou a ajudante de barbeiro: “O senhor tem uma vida tão interessante, nossa, tão cheia de coisa!”. No tom da fala, a moça deixou passar o descaso com sua história, como se a vida dela fosse totalmente sem graça. O cliente não deixou por isso: “Vou provar que você tem muito a dizer sobre você, quer ver?”. E ao responder a uma meia dúzia de perguntas simples, ela foi descobrindo, surpresa, que não tinha motivos para considerar sua trajetória tão desimportante. Além de comprar um terreno e construir uma casa sozinha, era mecânica de automóveis, levantara uma oficina contígua à casa e oferecia serviço de qualidade e diferenciado. O trabalho no salão nos fins de semana era tipo um bico, porque também gostava dali.

No meu caso, talvez o currículo vasto - na opinião da colega - passe certa inquietação de espírito. Porém penso que viver tantas experiências pode ter sido uma necessidade constante de aprendizado, uma sede de ver mais, saber mais, fazer mais, sentir mais. Uma negação ao mais do mesmo. Uma oposição à inércia. Uma vontade permanente de experimentar, mudar, gostar, não gostar, desistir, experimentar e mudar de novo, afinal, “tudo muda o tempo todo no mundo”.
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O espanto da colega de curso me botou pra pensar na minha trajetória até aqui, como ocorreu com a ajudante de barbeiro: “Puxa, realmente é coisa pra caramba!”. Por isso também concluí que não somente minha vida é movimentada, que todo mundo tem uma história pessoal recheada de acontecimentos e não se dá conta. Que não existe ser humano sem graça, não existe vida desprovida de encanto. O que há é a recusa em encantar a própria vida.
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2 comentários:

Luciano Neto disse...

Ultimamente eu ando ouvindo mais e falando menos. Portanto, direi apenas que que ouvi o que você disse, com carinho.

Wellington Freitas disse...

Muito bonito texto! Eu acho que quanto mais se tiver experiência na vida, melhor. Experiências nunca são demais, tanto as boas, quantos as não tão boas assim, que às vezes necessitamos para um choque de realidade! Texto gostoso de ler.