Estava na sala de aula, num papo trivial com o professor
após o intervalo do almoço, quando uma das colegas entrou no momento em que
citava rapidamente minha rápida experiência como enfermeira, ou melhor, técnica
em enfermagem. “O quê? Mais essa? Essa menina é uma surpresa a cada aula. Três
casamentos, câncer de mama, trabalhou em TV, é escritora, e agora diz que foi
enfermeira? Ô, o que você não fez? Que vida movimentada, hein?!”.
Gargalhada geral à parte, para quem olha com distanciamento
pode parecer uma existência no mínimo diferente, de alguém sem parada, sem
rumo, insatisfeito, inquieto, incompreensível, até mesmo não confiável. Logo
que me formei jornalista um amigo próximo me chamou de precoce, pois me casara
aos dezenove, concluíra a graduação antes de completar vinte e um e, a esta
altura, já separada. “Vida começando frenética”, disse-me.
O privilégio não é só meu. Toda pessoa traz riqueza no
currículo. Se não sabemos, pode ser por desinteresse nosso ou porque poucos se
permitem divulgar o histórico pessoal. No meu caso, preservados os pormenores,
não importa que saibam o que fui ou o que deixei de ser. Experiência de vida é
história, seja de quem for, e se as histórias alheias me são atraentes, não
escondo a minha. Não de caso pensado.
Boas são as surpresas com os currículos extensos que
descubro. Soube, por exemplo, que um puta profissional que conheço, hoje de
vida financeira confortável devido à atividade que exerce com qualidade há duas
décadas, teve uma infância pobre, filho único de uma mulher sofrida, que passou
sufoco para criá-lo. Hoje, mesmo na condição em que se encontra, mantém a simplicidade
e trata a todos com educação e delicadeza. Pra mim, antes de ter acesso a tais
informações, era apenas um homem lindo e elegante, além de muito competente no ofício
que escolheu e no trabalho que executa.
Na barbearia, um cliente que falava sobre sua rotina interpelou
a ajudante de barbeiro: “O senhor tem uma vida tão interessante, nossa, tão
cheia de coisa!”. No tom da fala, a moça deixou passar o descaso com sua história,
como se a vida dela fosse totalmente sem graça. O cliente não deixou por isso: “Vou
provar que você tem muito a dizer sobre você, quer ver?”. E ao responder a uma meia
dúzia de perguntas simples, ela foi descobrindo, surpresa, que não tinha
motivos para considerar sua trajetória tão desimportante. Além de comprar um
terreno e construir uma casa sozinha, era mecânica de automóveis, levantara uma
oficina contígua à casa e oferecia serviço de qualidade e diferenciado. O trabalho
no salão nos fins de semana era tipo um bico, porque também gostava dali.
No meu caso, talvez o currículo vasto - na opinião da
colega - passe certa inquietação de espírito. Porém penso que viver tantas
experiências pode ter sido uma necessidade constante de aprendizado, uma sede
de ver mais, saber mais, fazer mais, sentir mais. Uma negação ao mais do mesmo.
Uma oposição à inércia. Uma vontade permanente de experimentar, mudar, gostar,
não gostar, desistir, experimentar e mudar de novo, afinal, “tudo muda o tempo
todo no mundo”.
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O espanto da colega de curso me botou pra pensar na minha trajetória
até aqui, como ocorreu com a ajudante de barbeiro: “Puxa, realmente é coisa pra
caramba!”. Por isso também concluí que não somente minha vida é movimentada, que
todo mundo tem uma história pessoal recheada de acontecimentos e não se dá
conta. Que não existe ser humano sem graça, não existe vida desprovida de
encanto. O que há é a recusa em encantar a própria vida.
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2 comentários:
Ultimamente eu ando ouvindo mais e falando menos. Portanto, direi apenas que que ouvi o que você disse, com carinho.
Muito bonito texto! Eu acho que quanto mais se tiver experiência na vida, melhor. Experiências nunca são demais, tanto as boas, quantos as não tão boas assim, que às vezes necessitamos para um choque de realidade! Texto gostoso de ler.
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