4 de agosto de 2017

Entre as mulheres da minha vida

Edméa é o nome dela. Negra, sorrisão, cabelos crespos, sempre presos ou poucas vezes alisados com henê, soltos na altura dos ombros. Baixinha, magra, muito ativa, andava de um lado pra outro, resolvendo a vida. A própria, a do marido, das filhas e de todo mundo que com ela buscasse socorro. Morava na periferia da periferia da cidade, numa casa própria, porém de infraestrutura precária. Ela e o companheiro se completavam na rotina de trabalho duro para dar o mínimo de dignidade às meninas: estudo, roupa, comida, cama, chuveiro quente. Era umbandista. Atendia em casa, com suas entidades, ao povo necessitado de apoio espiritual, um trabalhinho pra arrumar emprego, pra curar doença, pra trazer amor de volta. Não tinha hora nem dia pra levar ajuda a qualquer pessoa que necessitasse.

Edméa não é mais deste mundo. Partiu nem sei mais há quantos anos. Foi continuar seu trabalho de caridade na outra dimensão; não saberia ficar à toa nem no paraíso. Está presente em boas memórias de infância, quando era merendeira da escola pública e todas as vezes que minha mãe me mandava lá, me recebia com um pote de arroz doce. Nunca mais comi arroz doce como o dela; nem minha mãe conseguiu reproduzir a consistência e o sabor. O largo sorriso volta e meia aparece na mente, como se ela mesma, em pessoa, se materializasse. Sorrio quando revejo na mente o olhar de menina que acompanhava suas risadas.

Uma das melhores amigas de minha mãe. Era assídua em casa, sentada à mesa da cozinha, com o copo de café na mão esquerda e o cigarro aceso na direita. Falava sem parar, enquanto minha mãe cuidava do almoço. Gostava de todos nós e me paparicava, a única criança da família naquela época. Se preocupava com meus irmãos, perguntava por todos. E a nós, também socorria espiritualmente. Bastava pedir. Certa vez torci o tornozelo na escola e após o tratamento médico, continuava sentindo dores. Edméa benzeu meu pé, religiosamente todas as semanas, até eu afirmar, com certeza, que não doía mais.

O coração não lhe cabia no peito. Mal tinha pra si, mas vivia de oferecer aos outros, de se doar. De educação deficiente, não sabia resolver as encrencas em família com calma e serenidade: brigava, esbravejava, chinelo voava em cima das crianças. Vizinhança a escutava de longe, quando o pau quebrava na casa da Edméa. Era assim que sabia fazer e nada disso lhe tirava a quantidade de amor que levava na alma.

Fazia festa no dia de Cosme e Damião, preparava um bolo confeitado do tamanho da mesa, doces, balas, pirulitos e guaraná. Enchia a casa de criança, incorporava a Mariazinha e ia pro quintal brincar com a gente. Aquilo era engraçado e estranho ao mesmo tempo, pois não entendia direito aquela transmutação: Edméa de saia rodada, cabelos presos numa maria-chiquinha, com laços de fita cor-de-rosa, descalça, brincando de pique, com um pirulito na boca.

Muito antes de chegar a velhice, o coração grande de Edméa não deu conta do agito que era a vida dela. Ficou fraco e lhe roubou a disposição. Não demorou e Edméa se despediu da existência. Foi brincar de pique com as crianças do outro mundo. Lembro do choque da notícia, da minha mãe triste, no entanto não chorei. Parece que passei a dor adiante. Não fui ao velório, não vi o corpo descer à sepultura. Ela é Edméa e está aqui, nesse sorrisão que que me aparece com frequência. Sempre na hora certa.
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