Há momentos específicos
em que recordações de infância retornam aos borbotões. Se já não soubesse algo sobre
as rasteiras do inconsciente, diria que me chegam do nada. Só que não. Com a
idade próxima dos cinquenta, é inevitável o retorno no tempo, para devidas
avaliações e revisões, mesmo sem fazer esforço. A cabeça vai lá, cada dia
visita uma situação, traz pro agora, mistura tudo e com o resultado posso tentar
saber o que fazer adiante. Muitas vezes não sai coisa boa. Mergulhar na memória
é ação de alto risco: levanta remorsos, arrependimentos, dores, perdas.
Reafirma a falta de coragem para enfrentamentos tantas vezes necessários.
Mostra numa telinha o que não foi realizado. Aponta as oportunidades que
passaram e sequer foram percebidas.
Não era a
intenção o lamento. Cenas de infância têm me retornado com certa frequência, porém
não me motivam a discorrer sobre dias felizes, brincadeiras sem fim, amigos de
rua, brincar descalça na lama depois da chuva. Falo de desejos alimentados
durante a existência e que não se tornam palpáveis. A gente quer ser tanta
coisa, quer ir a tantos lugares, quer fazer de tudo um pouco e as horas voam e
as obrigações são em maior número que a quantidade de dias que a vida proporciona
pra criar, produzir, executar planos e projetos.
Lembro agora
da última conversa sobre desejos que tive com minha irmã, dois meses antes dela
morrer. Era como se fosse a mãe amiga, companheira, e desse lugar me cobrou um
posicionamento mais seguro diante do mundo. Longe de ser ela mesma uma rocha,
queria me ver de queixo pra cima, transformando meus desejos em realidade,
pisando firme na terra, dona do meu nariz, independente, autônoma, bem
sucedida, material e emocionalmente.
Ser mulher não
ajuda. São inúmeros os mandatos impostos, muito peso colocado nas costas à
saída do ventre, antes mesmo de ver a luz. Não pode isso, não pode aquilo, é
feio, é pecado, obrigação com a casa, obrigação com a família, arte não dá
sustança pra ninguém, tem que estudar pra ter emprego (nunca pelo conhecimento!),
não pode rir alto, falar alto, opinar, questionar, não querer, não se obrigar, deve
ser obediente, cordata, se submeter, vai casar, ter filhos, depender e se
sujeitar ao marido e muitas etcéteras.
Antes de
organizar a cabeça pra começar a fazer planos, é preciso brigar contra todos os
encargos e ordenações, o que demanda tempo, paciência (às vezes nenhuma), rompimentos,
solidão, medo, adiamentos, desistências, longas pausas, e muitas vezes parada
definitiva. Quando vê, passou. A saúde não é mais a mesma, o vigor físico ficou
lá atrás, os desejos têm de ser repensados, remanejados, substituídos. E agora?
Qual o sentido disso?
Entendo quem
vive de lembranças. Cumpre os compromissos da vida e passa o resto dos dias
voltando atrás. Minhas próprias lembranças, penso que as bloqueei. Uma névoa
encobre a maioria delas; quando parto em busca, vejo-me em meio à bruma densa. Diviso
fragmentos, nada inteiro, nítido, completo. Dizem que me aproximo da idade em
que a memória começa a criar. Talvez seja boa oportunidade de recriar o roteiro
das cenas para encaixar nas partes soltas e compor narrativas inéditas. Seria
perfeito se de um novo passado pudesse se desenhar um novo futuro.
Pelo menos nas
madrugadas, enquanto o corpo repousa, o inconsciente – ou espírito – passeia bastante.
É quando vou onde quero, encontro pessoas que nunca vi, vivo intensamente histórias
originais, entabulo longas conversas, realizo. Mas, sobre minhas noites, já é outra
a prosa. Depois eu conto.
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2 comentários:
Magnífico texto. Triste, talvez. Mas com uma poética que mexe com aquilo que tentamos esconder de nós mesmos.
Magnífico texto. Triste, talvez. Mas com uma poética que mexe com aquilo que tentamos esconder de nós mesmos.
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