O dia não tem nada de especial, não se trata de data
comemorativa, aniversário, nada de significativo no calendário. De repente, uma
aparição surge de um dos cantinhos da memória: uma senhorinha magra e alta no
fundo do quintal, com uma das mãos às costas, na altura da cintura, e a outra
acenando. O coquinho no cabelo branco ralo, os olhos verdes sempre muito vivos
e o sorriso que trago de herança.
Não quero entender por que, ao mudar de posição no sofá, a
imagem da minha avó me visita sem aviso. Apenas paro a leitura e delicadamente
recosto a cabeça pra não perder a lembrança da mãe de minha mãe, que me ocupa
de repente. Curto a saudade, repasso bons momentos, os exemplos, a alegria, o
temperamento forte e altivo de uma autêntica libriana.
Estivemos por pouco tempo juntas nesta vida. Os encontros
eram semanais, por um dia ou dois. Às vezes era ela que vinha em casa, passava
um tempo. Nessa convivência rara aprendi muito do que sei sobre viver com
simplicidade, valorizar o que se tem, fazer o que é possível e ser feliz com
tudo.
Era religiosa, benzedeira. Mantinha na sala do barraco um
congá. Recebia as crianças das redondezas, trazidas pelos pais, que buscavam no
oculto a solução para os males do corpo e dos ânimos exaltados. Com ramos de
arruda e guiné na mão, rezava e afastava os maus fluidos. Sempre tinha um bom
conselho, uma sugestão, uma dica.
Passei minha infância refém de alergias, me coçava inteira e
ela, sempre muito paciente comigo, ensinava a massagear a pele, sem usar as
unhas, pra não me machucar. No grande quintal de terra, alegrava-se ao me
mostrar as margaridas em floração, ensinou o prazer de cultivar plantas e
hortaliças. Semeou em mim o mesmo gosto.
Tinha doze anos quando ela encerrou seu ciclo na Terra. Não
chorei pela morte, pelo término da existência física. Mesmo criança, sem noção
clara do fim, senti pelo pouco tempo que tivemos; queria conversar mais, ver
aquele riso debochado tanto mais, rir das piadas, ganhar abraços, beijos,
afagos e broncas. Sentir o perfume nos cabelos, que só ela tinha, comer o arroz
mais gostoso que já experimentei. Tão especial assim, fez jus à eternidade que
trazia no nome. Estará para sempre na memória, no sangue, na firmeza de
espírito para encarar a vida - seu maior legado em mim - até nos encontrarmos novamente.
“Bença, vó!”
Publicada originalmente no Jornal Volta Cultural - Edição de Maio/2015
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