Acordo cedo.
Antes de o Sol aparecer por trás da goiabeira, abro meus olhos e, preguiçosamente, vejo o dia nascendo a minha volta. Faço isso rápido, pois o espaço é pequeno. Numa espreitadela consigo conferir o que rola por aqui. Quero despertar devagar, no entanto não me deixam. Os vizinhos de frente formam uma família grande; mal saem da cama e estão fazendo barulho. As crianças gritam, reclamam de fome, saem pra brincar, e eu os espio de longe.
Mais um dia igualzinho a todos os outros.
Levanto para o desjejum. Comida farta, porém já meio enjoativa; nunca muda. Como tudo, apesar da mesmice. Não vou deixar para as moscas. Gosto mais das frutas e detono tudo o que vem. Lambuzo os beiços, a cara, as mãos. De barriga cheia, volto a me recostar. De longe, quieto - enquanto posso - assisto a algazarra dos vizinhos.
Minha rotina é solitária.
Estou só, vivo só, apesar do movimento constante por aqui e das visitas diárias. Não tenho namorada, noiva ou esposa, muito menos filhos. Passo meus dias assim, entre deitar e levantar, comer, mirar alguma coisa ao meu redor, ver o céu, acompanhar o Sol passar por cima da goiabeira e cair do outro lado, atrás das patas-de-vaca, onde os sabiás laranjeira fazem coro na madrugada e no fim da tarde. Nos horários certos meu serviçal traz minhas refeições. Sou tratado com carinho e atenção. Tomo banhos regulares, sou medicado se adoeço.
Mas, não sou feliz.
O alarido do pessoal que para pra me ver me irrita ao limite. Já não bastasse os vizinhos em algazarra, tenho que aturar essa balbúrdia o dia todo. Ninguém me respeita. Gosto de brincar e de me relacionar, porém detesto ser incomodado durante meu sono. E às vezes, como qualquer ser, preciso de recolhimento, de ficar mudo no meu canto, simplesmente ficar ali, atendendo a necessidade do meu corpo.
Na verdade, quase enlouqueço.
Meus surtos são diários. Não tolero esse povo que vem me ver e fica me atirando coisas. Em resposta, grito, berro, bato no peito, corro de um lado para outro, atiro minhas próprias fezes pra ver se causo algum temor, ou repulsa. Ao invés de irem embora, acham graça, e riem, e gritam mais e mais, e me atiram pedras. Volto pro meu canto e daqui não saio, até que finalmente me deixem em paz. Não aguento viver esse estresse diário, contínuo. Será que nunca vai ter fim? Serei condenado a ficar o resto da minha vida exposto a tamanha desconsideração? E jaz faz anos, muitos anos, que me hospedarem nesse lugar esquisito. Está certo que fui salvo das maldades de um pessoal que me obrigava a horrores que nem gosto de lembrar, mas me trazer pra cá também não foi uma boa ideia.
Começa a escurecer.
O silêncio, aos poucos, torna a reinar. Espero mais um bocado, as crianças do vizinho caem no sono, e posso deitar sossegado para olhar as estrelas. Não é muito bom, não, porque as admiro apenas por um quadrado em cima da minha cabeça. Melhor assim do que quando chove e tenho de permanecer no meu cantinho, lá dentro, ainda mais isolado. Do jeito que estou agora, ouço as folhas das árvores se roçando ao sabor do vento, galos cantando lá longe, a água do riacho.
Adormeço.
Sonho que estou em casa e me confundo, pois aqui, onde vivo, chamam de minha casa. É outro lugar, aberto, de uma grandeza sem fim, e com milhares de árvores, tantas que nunca vi. Eu subo nelas, pego as frutas nos galhos, cochilo à sombra de grandes copas. Tenho família! Uma mulher, filhos, irmãos! Meu coração se enche de alegria, me emociono, quase choro. Pulo, corro, brinco com meus pequenos. Não há limites na imensidão que é a minha casa. Não fico doente, não surto. Minha vida é plena!
Acordo cedo.
.
.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário