11 de fevereiro de 2014

Jornalismo, bombas, leões e sapos

O ano era 1994. Era repórter da TV Rio Sul, afiliada da TV Globo sediada em Resende/RJ, e cobria a região sul-fluminense. Um barranco atrás de uma casa na cidade de Barra Mansa desabou e lá fomos, eu, o cinegrafista Milton Oliveira Filho (hoje na Globo) e o auxiliar Moisés Antunes. Logo que entramos na varanda da casa, caiu outra parte do barranco e fomos atingidos. O cinegrafista e o auxiliar ficaram com metade do corpo embaixo da terra. Eu fui arremessada para dentro da sala da casa, com a força do deslizamento. Ossos quebrados e ferimentos pelo corpo foram o saldo daquele susto.

Jamais o jornalismo foi o mesmo pra mim. O medo me superou. Não pude aceitar que minha integridade física perdesse prioridade por uma notícia. Posso estar mexendo em vespeiro com esta confissão, já que comumente a carreira de jornalista é considerada pulsante, vibrante, justamente pela emoção de poder estar na cara dos acontecimentos. A questão é muito pessoal: respeito e invejo quem consegue o feito de enfrentar qualquer adversidade por uma imagem, uma informação, estar frente a frente com o fato, mesmo que tal fato seja um leão de boca bem aberta e faminto. Desanimada com o trabalho em TV, pouco tempo depois do acidente já estava certa de que pular fora seria a decisão acertada. Afinal, desencantada que estava, só poderia fazer o mínimo e em nenhuma atividade o mínimo deve ser suficiente.

Minha admiração pelo Santiago Andrade não tem dimensão. Morreu em trabalho, sentimos por isso, no entanto, tinha orgulho do que fazia, era um apaixonado, como são tantos outros que conheço, que não trocam o dia a dia de ralação por nada. Admiro mais a disposição de repórteres que, como ele, e a despeito dos comprometimentos dos órgãos de imprensa, tentam cumprir sua tarefa primordial, que é a de informar com isenção, colocando-se diante de situações de perigo com o intuito único de buscar a informação, captar a melhor imagem. Digo até que sinto certa inveja dos colegas que provaram o sabor do risco e gostaram. Não fui capaz.

Por outro lado, quando vejo a imprensa brasileira do jeito que está, nas mãos de umas poucas famílias que definem o que milhões de outros brasileiros devem saber ou não, aí sim, é que sinto a morte do Santiago. Morreu por quê? Para quê? Quando vejo um sem número de estudantes de jornalismo nas salas de aula sem a menor ideia do que estão fazendo ali, sem ler absolutamente nada e sem o menor interesse em conhecer a realidade dos bastidores e das redações, me dá um nó no estômago.

Não pude ir em frente (se disser que fui covarde, levo um pito do terapeuta). Mas, ainda assim, sou apaixonada pela profissão e gostaria de vê-la num patamar bem diferente do que vejo hoje. A tecnologia a passos de gigante e a notícia cada vez mais manipulada por interesses que a gente nem pode imaginar, presa lá atrás, ao coronelismo. A morte do Santiago serve de exemplo para trazer novamente à tona a discussão sobre violência, a truculência da nossa sociedade atual, o acirramento das opiniões que dia após dia multiplicam o ódio nas ruas. Porém, não pude vislumbrar um levante pela dignidade do nosso trabalho, da qualidade e da honestidade da informação, da comunicação livre como direito.

É o que me vem à mente depois do que aconteceu, depois de constatada a morte do cinegrafista. Pensei em todos os meus amigos que permanecem nas redações, que definem o jornalismo como uma ‘cachaça’, como sempre costumamos dizer. Pensei nos profissionais que engolem um sapo por dia, se não mais, para garantirem seus empregos e continuam se colocando na linha de frente de bombas e rojões, movidos pela paixão, mesmo que a realidade apurada não seja a que vai ser transmitida pelo veículo que representam. E no quanto nós, que estamos do lado de cá, precisamos aprender na reflexão, na crítica e na compreensão do que a morte de um profissional como Santiago carrega de significados.

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2 comentários:

Insight cultural disse...

Às vezes questiono se vale a pena se anular para levar a informação... Digo se anular, porque em muitos casos temos que esquecer que temos filhos, amigos, pais, amigos e se embrenhar no fogo cruzado correndo risco e o correr risco é o que menos importa...

Nem a verdade apura muitas vezes importa, o que importa é a informação lapidada pela política da empresa.

Concordo contigo eterna mestra, são mesmo admiráveis os colegas que amam o jornalismo diário com altas doses adrenalina e pessimamente remunerados...

Katia Almeida disse...

Perfeito! Lindo texto!,