Da janela do ônibus, chegando ao Rio de Janeiro, fiquei
lado a lado com o por do sol. Tive o ímpeto de pegar o celular para eternizar
aquela exuberância: o céu limpo e ele lá, vermelho, sem brilho, como um balão
suspenso. Pois é, se tivesse parado pra fazer uma foto e, claro, mostrar pra
todo mundo na rede social, não teria tempo de admirar, de observar os detalhes,
ficar ali, naquele engarrafamento, parada, quase sem respirar, simplesmente
olhando.
Com o tráfego lento, pude me encantar com o anoitecer. Em
horário de verão a noite chega de mansinho. Um breve instante em que já não é
mais claro, mas também não é outra coisa. Para os meus olhos, ‘ocorre’ uma cor
que não conheço. O céu ainda é azul quando se divisam as primeiras estrelas,
mas ainda é dia. E os aviões voando baixo, sob o céu limpo, também são motivo
pra cair na tentação e sacar logo o celular. Nada disso. Preferi, de novo,
manter-me quieta e contemplar, ao som dos Beatles, que cantavam só para mim e
para a minha paisagem.
Anos atrás ele teve um filho. Foi chamado às pressas no
trabalho, porque a mulher passaria por uma cirurgia para retirar a criança.
Estariam ambos em risco de morte. O bebê nasceu, ganhou um nome, foi para a UTI
e lá, só recebia visitas dos pais. Não havia a facilidade que temos hoje de
fotografar o que se quisesse, onde se quisesse e de qualquer jeito. Não havia
espaço para pensar nisso. A emoção falava mais alto. O ímpeto era apenas o de
rezar, pedir aos Céus pela sobrevivência do filho, o primeiro filho, tão
esperado.
Depois de quatro dias na UTI, ele se foi. Não teve forças
para lutar e ficar com os pais. Mal deu um alô para a existência na Terra e se
despediu. Não pode atender aos apelos da mãe. Não deu ao pai a alegria de
homenagear Heitor Villa-Lobos, com o nome que recebera. E no velório, o pai, de
olhos baixos, fixados pela última vez no filho com quem esteve tão pouco,
pensou na imagem que iria guardar para sempre. E foi então que se deu conta que
não fizera nenhum registro do filho, nada. Não haveria nada pra guardar, senão
o rostinho gravado na memória. “Restou apenas o carimbo do Teste do Pezinho,
que nem sabemos mais onde foi parar.”.
Lembro a dificuldade para tirar fotos 30-40 anos atrás,
na minha infância. As câmeras eram caras, os filmes eram caros e a revelação,
minha nossa!, era um tiro no bolso o que se pagava por foto revelada.
Impossível sair por aí registrando até a formiga que atravessasse a parede da
cozinha. Era preciso planejar, não desperdiçar. Era preciso escolher que
ocasião mereceria ser fotografada. Programava-se um evento para dias, meses à
frente, e então se pensava em fazer fotos ou não. E hoje, com tanto recurso ao
alcance da mão, em que cada passo, cada refeição, cada encontro, cada por do
sol rende um clique, seguro minhas mãos para não puxar o celular, para que o
impulso de fazer uma foto não me atrapalhe a visão.
Penso em como aquele homem gostaria de ter o acesso que
temos hoje. Talvez puxasse o celular do bolso e teria guardado para sempre o
rosto do filho em ângulos inúmeros. Mas numa época em que isso era tão
complicado, parar de sentir, parar de rezar, afastar-se nos breves minutos que
tinha ao lado do filho e se organizar para buscar câmera e comprar filme era
muita informação extra. Não cabia no desespero.
Uma amiga teve um filho prematuro que permaneceu meses
numa UTI. Também tinha as visitas restritas, mas de lá ela sempre nos enviava
fotos, pelas quais acompanhávamos o esforço do moleque em ficar conosco. Se
tudo fosse assim tão fácil anos atrás, talvez aquele homem tivesse mais que uma
névoa de lembrança do rosto do filho. Este, sim, seria um registro do qual não
me furtaria, se pudesse. Porque por do sol ainda pode ser visto e apreciado
todos os dias; basta estar vivo e com o celular bem guardado.
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