Algumas surpresas boas, outras nem tanto. Como sempre digo, a Festa Literária Internacional de Paraty é uma
excelente oportunidade de aprendizado e de reciclagem de ideias para quem
trabalha com literatura e para os que estão a fim de manter sua informação
atualizada.
A principal observação sobre as mesas de debates da
programação principal é com a qualidade dos convidados. Diferente dos outros
anos, a curadoria teve o cuidado de escolher não só autores badalados para
falarem sobre seus livros em lançamento. Tivemos desta vez nomes de peso no
meio acadêmico, que elevaram o nível dos debates e provocaram reflexão.
Nas mesas “Graciliano Ramos: ficha política” e
“Graciliano Ramos: políticas da escrita”, as discussões foram tão bem preparadas,
tão claras e tão esclarecedoras, que o público mal piscava. Nestes encontros,
fomos colocados diante do biógrafo de Graciliano, Dênis de Moraes; do
sociólogo, Sérgio Miceli; do brasilianista Randal Johnson, na primeira, e do
professor de teoria da Literatura, Wander Melo Miranda; do filósofo Lourival
Holanda; e do pesquisador Erwin Torralbo Gimenez, responsável pelo Arquivo
Graciliano Ramos, da USP, na segunda. Com a mediação muito bem pontuada e bem
humorada de José Luiz Passos, o resultado, nas duas, foi um “aaahhhhh”, quando
anunciado o fim do papo. Penso que ficaríamos por ali mais algumas horas, sem
cansar.
Outra delícia de conversa aconteceu na mesa entre a
escritora Lila Azam Zanganeh e Francisco Bosco, poeta, letrista, filósofo e
escritor. Com a mediação de Cassiano Elek Machado, o tema era “O prazer do
texto”, mas prazer mesmo foi conhecer Lila, uma escritora de trinta e seis
anos, que aos vinte e três já era professora em Harvard. Uma iraniana criada em
Paris, que hoje mora nos Estados Unidos e escreve em inglês. Uma moça ousada
que decidiu aprender o Português há seis meses e assumiu o desafio de
participar da mesa sem necessidade de intérprete. E a atuação dela foi linda,
justamente por sua humildade em falar, errar, pedir desculpas, se corrigir a
todo momento com Cassiano, sem perder a graciosidade, muito menos a qualidade
do conteúdo, sobre Vladimir Nabokov. Por sua vez, Francisco Bosco foi uma
novidade. Doutor em teoria literária e conhecedor da obra e do pensamento de
Roland Barthes, deu uma aula sobre textos de prazer e textos de gozo.
O documentarista Eduardo Coutinho foi a estrela do sábado.
O bate-papo com ele, mediado por Eduardo Escorel, virou o assunto do dia. Aos
80 anos, Coutinho é um dos nomes mais significativos do cinema documentário
mundial. Despojado, aparentemente indiferente à importância que normalmente se
dá ao evento, foi sério e grave quando precisou ser, ao mesmo tempo em que
provocou gargalhadas no público com suas ironias. Algumas falas anotadas de Coutinho:
“Eu não
falei palavrão ainda; isso é uma grave autocensura.”
“Quem
vem ao mundo tem mistérios.”
“Não
acredito em Deus como todo mundo acredita (...) mas se estiver em um avião em
turbulência peço ajuda para todos os santos.”
“Não
entrevisto pessoas públicas - médicos, advogados, engenheiros, políticos –
porque elas têm muito a perder; prefiro as pessoas simples. Pessoas simples não
têm nada a perder.”
“Só
converso com alguém com uma câmera na mão.”
E a melhor de todas, quando Escorel disse que a pergunta
que faria vinha da FlipZona:
“FlipZona? O que é isso? É
meretrício? (...) Ou é aquele povo excluído lá fora, proibido de entrar?”
A mesa Zé Kleber, que este ano teve Gilberto Gil e Marina
de Mello e Souza discutindo o “Defeso Cultural” de Paraty, foi muito boa. O
tema é necessário; é preciso mesmo arregaçar as mangas para buscar equilíbrio
entre turismo, desenvolvimento e preservação, sem engessar a cultura local, mas
evitando o capitalismo predatório. No entanto, poderia ter sido muito melhor se
Gil fosse mais objetivo, falasse menos, deixasse a companheira de mesa se
expressar mais e se o mediador Alexandre Pimentel interviesse neste sentido.
A diversidade de temas discutidos nas mesas foi um ponto
alto na programação. Falou-se sobre literatura, arquitetura, política,
filosofia, música, cinema. Foram incluídos três debates extras para tratar das
manifestações populares, doze autores infantis foram a dezoito escolas de
Paraty para conversar com alunos, três mil livros foram distribuídos a crianças
da cidade, a FlipZona organizou dez oficinas.
Na sexta-feira, como se disse por lá, “quem viu, viu;
quem não viu que morra de inveja”. Creio que não seja necessário detalhar o que
foi a mesa “Lendo Pessoa a beira-mar”, com Maria Bethânia e Cleonice
Berardinelli. Aos meus olhos foi a mesa mais concorrida de toda a Festa. Os
ingressos para as Tendas dos Autores e do Telão esgotaram na primeira hora de
venda. Na Tenda do Telão, onde a mesa é transmitida ao vivo, o espaço do lado
de fora para quem assistia de pé era disputadíssimo. Muita gente, mas muita
gente mesmo.
Ainda na sexta, logo após o espetáculo com Bethânia e Cleonice,
tivemos mais uma boa dose de poesia com o show “Vinicius 100 – palavra e
música”, na FlipMais . José Miguel
Wisnik, Paula Morelenbaum e Arthur Nestrovsky nos levaram a uma viagem à música
e poesia de Vinícius de Moraes. Com o talento musical, acadêmico e literário de
Wisnik; do violão elegante de Nestrovsky; e da voz precisa de Paula, o público de dentro e de
fora da tenda apreciou uma seleção de canções, alternadas por leituras de
poemas e histórias sobre a vida do poeta, suas composições e parcerias. Momentos
únicos na vida que a gente não quer que acabe nunca.
Excelente a ideia dos
vídeos sobre Graciliano Ramos, exibidos antes do início de cada mesa. Foram
gravados 16 depoimentos de pessoas que tivessem alguma relação com a obra do
homenageado e entre os entrevistados estavam Luiz Costa Lima, Marcelino Freire,
Alcides Villaça, Antônio Torres e Marçal Aquino. Lembranças e observações
pessoais sobre Graciliano deixavam o ar intimista antes das mesas.
Foi memorável o encontro
com nosso amigo escritor Bráulio Tavares. Ele participou da Flipinha, visitou e
fez palestra numa escola que adota um dos livros dele e deu uma entrevista na
casa do Instituto Moreira Salles, na Rádio Batuta e ainda teve tempo de
bordejar com os amigos por Paraty. Na entrevista no IMS, em que o convidado
fala sobre um escritor de preferência, Bráulio escolheu José Agripino de Paula,
do qual comentou e leu trechos das obras “O lugar público” e “Panamérica”. A
entrevista completa está disponível em www.ims.com.br/radiobatuta
O arroz de festa desta
edição foi Milton Hatoum. Ele fez a conferência de abertura “Graciliano Ramos:
aspereza do mundo e concisão da linguagem”, também participou da programação da
casa do Instituto Moreira Salles e de outros eventos durante a Festa. Mas entre
uma coisa e outra pode ser visto circulando pelas ruas de Paraty, todos os dias,
bastante à vontade.
A organização acertou em
cheio com as mesas extras que discutiram as manifestações populares no Brasil.
Numa Flip em que o homenageado foi Graciliano Ramos, teve tudo a ver.
O nível dos mediadores
melhorou sensivelmente. Destaque para José Luiz Passos, que mediou as duas
mesas sobre Graciliano Ramos, na sexta e no domingo.
***
O show de abertura na
quarta à noite, com Gilberto Gil, foi mesmo maravilhoso. Pra quem estava dentro
da Tenda, somente. Não sei até agora porque a organização da Flip direcionou
todo o som para privilegiar o público que comprou ingressos, deixando perplexos
e duplamente frustrados os que tiveram que ver de fora. Disse duplamente porque
quem assiste aos shows do lado de fora da tenda gostariam muito de estar lá
dentro, mas não têm acesso aos ingressos por motivos vários. Se a tenda é
aberta, não é justo que toda aquela multidão não tenha direito a ver, mesmo de
longe, e ouvir. O próprio Gil tentou, no início da apresentação, fazer algo por
aquele povo todo que gritava pedindo para aumentar o som. Em vão. Essa foi a
primeira surpresa negativa na Flip este ano.
Apesar de os ingressos
para o show terem se esgotado nos primeiros trinta minutos após a abertura das
vendas, era possível ver muitos lugares vagos no interior da tenda. Lamentável
o que se viu. Parece que houve reservas para organizadores, autores, parentes e
apaniguados e muitos resolveram não dar as caras. E lá fora, com certeza, havia
muita gente que tentou comprar ingresso, não conseguiu e apenas viu Gilberto
Gil, sem conseguir escutar nadinha do show.
A segunda surpresa
negativa foi com os banheiros. Queda lamentável em relação à qualidade do ano
passado. Nem é preciso entrar em detalhes; basta dizer que foram instalados
banheiros químicos comuns, com aquele aroma característico, vasos sanitários
desenhados para mulheres de dois metros de altura, enfim, se oferece o melhor
uma vez, deixar a peteca cair depois é muito feio. Argh!
Observei que algo provocou
uma mudança notável na configuração geral do espaço da Flip este ano e me
pareceu ser um encurtamento da verba. Além da questão dos banheiros, as tendas
estavam feias e não teve loja; os artigos que eram vendidos na lojinha da Flip
ocuparam um balcão minúsculo dentro da livraria, sem a variedade de sempre. O
caderno tipo Moleskine grande e de excelente qualidade vendido nos outros anos,
virou um caderninho de notas bem fuleirinho, oferecido ao mesmo preço do
anterior. Escorchante.
A tradução simultânea na
Tenda do Telão não esteve lá essas coisas, como sempre. Na mesa “A vida moderna
em Kafka e Baudelaire”, sexta à tarde, vi muita gente sair antes da primeira
meia hora de discussão. Além dos participantes não empolgarem e do antipático mediador
não ajudar muito, a tradução simultânea da fala do italiano Roberto Calasso era
arrastada, sonolenta...
Com exceção do sábado,
quando a Festa recebe seu maior número de visitantes e a estrutura geral fica
quase inviável, notou-se certo esvaziamento, observado também por comerciantes
locais.
***
Como em todas as edições,
os organizadores se encontram com a imprensa no domingo, após o fim da
programação, para uma avaliação geral. Eles calculam o público visitante entre
20 e 25 mil pessoas nos cinco dias de Festa, o que muitos olhos discordaram.
No ano que vem a Flip vai
acontecer em agosto, por causa da Copa do Mundo e já há nomes levantados para o
processo de escolha do homenageado: Rubem Braga, Mário de Andrade e Lima
Barreto.
Já estou na torcida por
Rubem Braga, é claro!
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Um comentário:
Um dia conhecerei a Flip. Parece bom. Bom domingo.
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