Na sala de espera do consultório médico, a leitura que enche o tempo
enquanto aguardo a vez é interrompida por um ‘boa tarde’ em altos brados. Ergo
a cabeça, devagar, despertando para a realidade daquele espaço de pouquíssimos
metros quadrados. Um homem, velho, corpulento, cabelos brancos, cara redonda, é
empurrado na cadeira de rodas por uma mulher, velha, magrela, arrasada,
abatida, olheiras fundas. A mulher dele. Ela diz boa tarde também, mas quase
não se ouve a voz.
Até então, nada muito diferente do que se vê diariamente naquele prédio,
ocupado quase 100% por consultórios médicos, clínicas, fisioterapeutas. Há
estabelecimentos cujas filas atingem os corredores, tamanho o movimento de
pacientes de planos de saúde atendidos por ali.
A senhora se dirigiu ao balcão e solicitou o atendimento para o marido
que, além da consulta, precisaria ainda de um curativo nas escaras nas costas.
Mas, como viríamos saber logo, ela sofre de certo grau de surdez, e não ouviu
quando a secretária perguntou: “Vai fazer curativo?”. O marido fez as paredes tremerem naquela sala
exígua: “Não tá ouvindo? Responde! Ela tá perguntando se vou fazer curativo!
Fala logo! Sua surda! Ô moça, você desculpe, mas essa daí é surda, não escuta
nada. Fala mulher!”. As exclamações são insuficientes para reproduzir aqui os
berros daquele senhor.
Gelei. Não levantei os olhos do livro; só interrompi a leitura. Mal deu
tempo de digerir a reação intempestiva do homem e a mulher retrucou (e desta
vez a ouvimos em alto e bom som): “Cala a boca! Não sabe o que tá dizendo! Para
de me encher! Tô aqui sem almoço por sua causa! Não viu o tempo que eu perdi
pra conseguir enfiar você num táxi pra trazer pra cá? Eu ouvi a pergunta, sim,
mas tô exausta, não consigo pensar duas coisas ao mesmo tempo! Para de me
encher e fica quieto aí!”.
Conheci diversas histórias de casais que viveram anos um pelo outro,
unidos pela doença de um deles, mantidos pelo sacrifício de ambos: o do doente,
pelo simples fato de estar acamado, impossibilitado; e o do outro que cuida, que
se dedica, que se entrega, que leva a médicos, medica, dá banho, troca
curativos e fraldas, resigna-se diante das crises depressivas e maus humores do
companheiro ou companheira. Mas nunca havia presenciado o quase limite do
desgaste que tal convivência provoca. Quando se ouve um relato de terceiros, o
primeiro ímpeto é o de compaixão pelo mais frágil fisicamente, o que está na
cama, o que teoricamente não pode se defender. Porém esquece-se do cuidador
esgotado, frágil emocionalmente.
Nem se toca aqui no item violência, nos inúmeros casos de crueldade que
se cometem contra incapazes mundo afora. É indiscutível que violência não se
justifica. Não se trata disso. O que quero dizer é que não há quem possa julgar
como se tratam os casais entre as quatro paredes de uma vida a dois que se
tornou um sacrifício diário de convivência. Entre duas pessoas lúcidas, que um
dia se uniram ainda jovens, esperando dias lindos no futuro, sonharam com uma
casa, filhos, almoço aos domingos, viagens em família. Entre duas pessoas que
de repente se veem diante do imponderável e têm de passar juntos por uma prova
de fogo.
Há os que se recusam, que não suportam o peso e pulam fora. A grande
maioria assume a responsabilidade um dia por amor e com o tempo por mera
obrigação. E o faz galhardamente. Já estive perto de experiências semelhantes e
vivi pessoalmente esta condição. Tive a sorte - ou dádiva - de necessitar de
cuidados e atenção especiais por pouco tempo, mas o suficiente para constatar o
real tamanho do desgaste. Não esqueço a porta que bati, com raiva, porque
queria silêncio, estava muito enjoada, precisava dormir, e da sala vinha o som
insuportável do jogo de futebol. Logo que bati a porta, arrependi.
Na sala de espera do consultório médico, após a cena catártica dos dois
velhos, passaram-se alguns minutos e, como se nada tivesse acontecido, ela falou
com ele: “E então, meu bem, gostou da fisioterapia?”. Ao que ele respondeu que
sim, concordando com a cabeça, mirando-a com olhos perdidos, feito criança. E
eu comigo: “Não dá, para tudo! Não se pode pensar nem dizer nada sobre o que se
vê aqui, não se pode avaliar, jamais julgar. Como saber o que vivem estas
pessoas 24 horas por dia, se obrigando, se tolerando, se doando e se distanciando,
se amando e se odiando ao mesmo tempo, um cansado do outro e dependente do
outro. O desgaste é muito grande”.
Sim, parece fácil falar, parece fácil a tentativa de analisar o fato por
um viés diverso. A dificuldade em absorver isso está na compaixão irracional
que pessoas doentes, acamadas mobilizam. No entanto, como li recentemente em
algum lugar, “canalhas também envelhecem”. Acrescento: gente de todo tipo, de
qualquer temperamento, com qualquer humor, fica velho, adoece. Portanto, disse
a mim após assistir àquela cena na sala de espera: é preciso compreender, apenas.
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2 comentários:
Nunca parei muito pra pensar nisso, pois pensava que se viesse a me acontecer algo assim seria quando estivesse mais velha. Sei lá... Não sei o que pensava antes de ter passado por isso!
Fato é que, hoje, após minha experiência em ser a companheira de um acamado, de enfrentar a doença, o medo, a angústia e, por fim, a perda, me fez ter uma opinião. E ela se resume em: Compreendo absolutamente quem desiste! Compreendo absolutamente quem não suporta! Pois é realmente muito difícil estar ao lado, sentir medo, e ter que dissimular; sentir vontade de chorar, mas rir; ouvir um desaforo, uma palavra de raiva e não revidar. Claro que tem o outro lado também... O do amor, da gratidão, do olhar choroso de agradecimento... É difícil demais TUDO! E impossível simplificar. Julgar, então, nem pensar! Melhor é aprender... Seguir enquanto for possível! Aceitar que sozinhos não conseguimos! Precisamos de apoio também! Dividir é uma boa palavra! Buscar uma fonte de alegria é importante! E, principalmente, fazer valer cada dia! Em momentos assim, aprendemos a olhar o céu, o sol, as árvores...
Eu estive lá, com você, tamanha a realidade do texto.
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