Em meio às inúmeras mensagens de congratulações, de rosas de
todas as cores, de textos enaltecendo qualidades femininas como sensualidade e
delicadeza, posts nas redes sociais valorizando a força da mulher por ter TPM e
cólicas e de parabéns por sermos simplesmente especiais, tive a oportunidade
de, na véspera do Dia Internacional da Mulher, de estar diante de Estrella
D’Alva Bohadana.
Você não sabe quem é Estrella, quase ninguém sabe. Mais:
quase ninguém sabe o que ela passou. Pior ainda: pouca gente tem ideia do que
ela sofreu por ter como opção de vida a luta incansável por uma sociedade
justa, igualitária e livre.
Em novembro de 1970, Estrella foi presa, levada ao antigo 1º
BIB, em Barra Mansa/RJ, onde teve início um inferno que duraria meses. Entre o
batalhão e o DOI-CODI, no Rio, foram duas idas e vindas e, durante as prisões,
foi submetida a todo tipo de tortura: choques elétricos na língua, seios,
vagina, ânus; ficou pendurada pelos pés no pau de arara; amarrada nua a uma
cama sem colchão, era bolinada por soldados; teve praticamente todas as
costelas quebradas. Sofreu um aborto; entrou em coma; voltou à prisão e amargou
todo o processo de tortura novamente. Sem trégua.
A acusação: fazia parte de um grupo de oposição à Ditadura.
Um grupo que tentava mobilizar cada vez mais jovens para lutar contra o governo
de exceção. Dedicou-se a brigar incansavelmente por direitos. Por isso foi
considerada inimiga, nociva.
As sequelas físicas: Estrella tem
60% do movimento dos tendões, pelo do tempo em que ficou pendurada no pau de
arara; “o restante tenho que recuperar com fisioterapia”, disse. Em
consequência dos choques elétricos, adquiriu infecção nas glândulas e ductos
mamários, o que a obrigou a passar por diversos procedimentos cirúrgicos e ainda
contraiu infecções urinárias de repetição, que duraram anos, por causa dos
choques na vagina.
Numa das vezes em que estava amarrada nua à cama, levaram
até ela o padre Natanael, também torturado, e que se recusara a olhar pra ela,
por pudor. “Pode me olhar, padre, pode me olhar porque estou completamente
vestida pelos meus sonhos, pelo desejo que não cessa de mudar o meu país”.
Este é apenas o resumo de uma longa história que ouvimos no
depoimento de Estrella Bohadana na Comissão da Verdade de Volta Redonda, dia 7. O nome
dela surgiu em outros depoimentos de ex-torturados da cidade e ela foi
convidada para falar sobre o que chamou de “um importante Centro de Tortura da
região”, referindo-se ao 1º BIB, que depois passou a 22º BIMtz e hoje é o
Parque da Cidade. “Nosso dever é não deixar virar essa página”, asseverou.
Solicitada a reafirmar a prática de tortura no 1º BIB, não só citou os nomes
dos oficiais torturadores, como avaliou que “havia uma espécie de busca de
aprendizagem, tipo como torturar melhor”.
Estrella acreditava em uma mudança social e ainda acredita.
Seus sonhos não foram esquecidos, muito menos calados pela tortura física.
Embora a dor emocional permaneça até hoje – e talvez para sempre –, com embargo
da voz, foi enfática ao revelar que valeu a pena. “Continuo acreditando no meu
sonho e por ele passaria por tudo aquilo de novo. Por isso é preciso não
silenciar, é preciso que estejamos atentos. O medo, a apatia, o arrependimento
e desistência causados pela Ditadura são o assassinato da própria história. A
vitória daquele regime foi em cima daqueles companheiros que perderam a
capacidade de questionar, de manter a atitude de indignação. Eu não consigo me
conformar com a desigualdade social deste país. Ainda sonho com um Brasil
melhor”.
Passado o impacto provocado pelo relato, pensei nas tantas
outras que sofreram igual ou pior ao longo daqueles anos que muitos preferem
esquecer. Pensei em mim e nas que me rodeiam. Estrella suportou meses de
tortura por lutar por uma sociedade justa, por arregaçar as mangas e tentar
fazer alguma coisa. Milhares de outras mulheres passam por barbaridades apenas
por serem mulheres. E o que estou fazendo para mudar essa realidade? É a
pergunta que me faço, insistentemente, nos últimos dias.
6 comentários:
Nessas horas se pode ver e sentir a força de uma mulher, que em nenhum momento desistiu, ao contrário se vestiu e se armou com seus sonhos.
Um consistente exemplo de luta política, em busca de construir o melhor para os outros; a consciência de que sozinho não somos ninguém; a melhor manifestação feminina no mês dedicado às mulheres.
Sim, não se apaga. O exemplo da Estrella povoa há mais de quatro décadas as lembranças.
Depois de 44 anos. ..quanta honra, quanta dignidade, que orgulho! A vida da Estrela honra a todos nós que militamos na resistência à ditadura e às violações de direitos elementares!
Ótimo texto, Giovana! Uma verdade que não deve ser esquecida, assim como tantos nomes de mulheres que sofreram a dura realidade da tortura no Brasil e no mundo. Emocionante!
Infelizmente, como você disse, muitos preferem esquecer. Mas a feridas ainda estão abertas, os torturadores estão soltos, impunes e essa impunidade dá origem ao abuso de poder da PM, que acha normal constranger pobres, negros, mulheres nas ruas. É preciso falar as novas gerações o que é DITADURA para que isso não aconteça mais.
Infelizmente, como você disse, muitos preferem esquecer. Mas a feridas ainda estão abertas, os torturadores estão soltos, impunes e essa impunidade dá origem ao abuso de poder da PM, que acha normal constranger pobres, negros, mulheres nas ruas. É preciso falar as novas gerações o que é DITADURA para que isso não aconteça mais.
Postar um comentário