Conheci aquele menino aos quatro ou cinco anos de idade.
Rodava a rua toda em cima de uma bicicletinha, feliz da vida. De família muito
pobre e desajustada, nunca teve condição de ter sua própria bicicleta e ganhara
aquela, usada, de um garoto do bairro. Parecia um indiozinho: pele bem morena,
cabelos lisos, escorridos, pretos, que chegavam abaixo das orelhas. Abria um
sorrisão encantador, por onde passava. Cumprimentava a todos, era educado,
simples, alegre.
Morava com o avô. A mãe o abandonara quando bebê e fugira
com um traficante. A mulher do avô o detestava. A bisavó tentava segurar as
pontas, mas não podia muito. Apanhava rigorosamente todos os dias. Os motivos:
uma caneca quebrada, uma porta fechada com força, passar pela sala correndo,
ter pesadelo de madrugada, fazer xixi na cama, chorar, sujar a roupa brincando
no quintal.
Era chamado de burro, imprestável, indesejado, estorvo. O
avô perguntava periodicamente o que estaria fazendo ali, naquela família, por
que teria nascido, se não seria melhor ter ficado ‘lá no além, onde não
incomodava ninguém’. E era trancado no quarto, sem comida; só podia beber água,
porque a mulher do avô assim o queria, simplesmente, por nada.
Aos 13 anos, chegou em casa depois da escola embaixo de
chuva e sujou a varanda de lama. A mulher, ensandecida, mesmo com chuva e com
vento, obrigou-o a dormir do lado de fora. Aos 14, na porta da escola, foi
ensinado a fumar maconha. Então, conheceu um pouco de prazer. A droga o tirava
daquela realidade sórdida. Alertado por uma das vizinhas, mesmo em idade tão
tenra foi capaz de dizer que qualquer coisa era melhor do que o que passava em
casa. Ao que ela questionou: “Mas e seus outros parentes? Não pode ir embora?”.
E só baixou a cabeça.
Do outro lado do sofrimento, a patota que o aliciara o
tratava ‘bem’, era ‘amiga’, o ‘compreendia’. A mesma vizinhança que se
encantara com aquela criança linda, fechara os olhos e os ouvidos para os
ruídos das agressões vindas detrás daquele muro ao longo dos anos. E agora
virava as costas para o destino que se desenhava. Aos 15, parou de estudar e
passou a vender droga ‘para colaborar com os amigos’ e manter o próprio vício.
Aos 17, estava atrás das grades.
*Crônica publicada na edição de março/2014, no jornal Volta Cultural
.
.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário