24 de março de 2014

Antes, durante. E depois?

Conheci aquele menino aos quatro ou cinco anos de idade. Rodava a rua toda em cima de uma bicicletinha, feliz da vida. De família muito pobre e desajustada, nunca teve condição de ter sua própria bicicleta e ganhara aquela, usada, de um garoto do bairro. Parecia um indiozinho: pele bem morena, cabelos lisos, escorridos, pretos, que chegavam abaixo das orelhas. Abria um sorrisão encantador, por onde passava. Cumprimentava a todos, era educado, simples, alegre.

Morava com o avô. A mãe o abandonara quando bebê e fugira com um traficante. A mulher do avô o detestava. A bisavó tentava segurar as pontas, mas não podia muito. Apanhava rigorosamente todos os dias. Os motivos: uma caneca quebrada, uma porta fechada com força, passar pela sala correndo, ter pesadelo de madrugada, fazer xixi na cama, chorar, sujar a roupa brincando no quintal.

Era chamado de burro, imprestável, indesejado, estorvo. O avô perguntava periodicamente o que estaria fazendo ali, naquela família, por que teria nascido, se não seria melhor ter ficado ‘lá no além, onde não incomodava ninguém’. E era trancado no quarto, sem comida; só podia beber água, porque a mulher do avô assim o queria, simplesmente, por nada.

Aos 13 anos, chegou em casa depois da escola embaixo de chuva e sujou a varanda de lama. A mulher, ensandecida, mesmo com chuva e com vento, obrigou-o a dormir do lado de fora. Aos 14, na porta da escola, foi ensinado a fumar maconha. Então, conheceu um pouco de prazer. A droga o tirava daquela realidade sórdida. Alertado por uma das vizinhas, mesmo em idade tão tenra foi capaz de dizer que qualquer coisa era melhor do que o que passava em casa. Ao que ela questionou: “Mas e seus outros parentes? Não pode ir embora?”. E só baixou a cabeça.

Do outro lado do sofrimento, a patota que o aliciara o tratava ‘bem’, era ‘amiga’, o ‘compreendia’. A mesma vizinhança que se encantara com aquela criança linda, fechara os olhos e os ouvidos para os ruídos das agressões vindas detrás daquele muro ao longo dos anos. E agora virava as costas para o destino que se desenhava. Aos 15, parou de estudar e passou a vender droga ‘para colaborar com os amigos’ e manter o próprio vício. Aos 17, estava atrás das grades.

“Também, né? Já vai tarde. Não merecia nem estar preso. Bom mesmo se estivesse morto.”. É. Talvez tivesse sido melhor mesmo. Pra ele.


*Crônica publicada na edição de março/2014, no jornal Volta Cultural
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