Elas não circulam tanto pelas ruas como gostaria que
fosse normal. Cometi esta ousadia muito mais que outras tantas, mas sei que não
é fácil. É necessária uma dose bem alta de aceitação para desfilar pelo
comércio, shoppings, bares, restaurantes, festas, exibindo um turbante, boina, lenço
ou chapéu, confessando ao mundo que foi pega por um câncer. Como eu, aqui por
perto, nunca me deparei, ou melhor, raras vezes.
Esbarro com uma de vez em quando. A impressão é que
querem se tornar invisíveis. Caminham meio furtivas, olham para baixo, ajeitam
o lenço a todo momento na tentativa de esconder a cabeça por cima das orelhas e
da testa. Nunca vi uma delas sorrindo. O mergulho pra dentro é tão grande que a
maioria engole o riso, as bocas se fecham, se encolhem na dor, às vezes na
revolta do “por que eu?”, na depressão, no medo. Como se fosse pecado ao menos
tentar um humor melhor, se alegrar, ver algo de bom na vida mesmo assim.
É duro, isso eu sei, dar esta tal de volta por cima e encontrar
motivo para, ainda assim, achar graça na vida. Logo que se recebe o diagnóstico
“você tem um câncer”, é como ter em mãos o próprio atestado de óbito. A doença
é tão assustadora e ainda tão devastadora na maioria dos casos que saber que é
portadora de um tumor é como ser avisada de que vai morrer em breve. “Arrume
suas coisas, organize sua vida, despeça-se dos seus amigos e parentes. Sua ida
está próxima.”. Por isso a tristeza, a depressão, a falta de forças, desânimo,
cansaço. Por isso a descrença de que vale a pena lutar. Por isso o desdém com a
necessidade de se buscar algo escondido lá dentro, como vontade de viver, por
exemplo.
Topei com uma destas mulheres no elevador. Usava lenço
colorido, olhos baixos, aquela tez reconhecidamente modificada pelo tratamento
quimioterápico. Era amparada por outra pessoa. Frágil, nitidamente cansada. Passei
por isso por volta da quarta seção de quimio. Minha vontade foi de chamá-la,
pedir que olhasse para cima, que visse o mundão a sua volta, as pessoas que a
esperavam para viver, que me olhasse “veja, estou curada, você também pode!”. Mas
esta coragem não tenho, porque sei que a maior parte delas não quer ouvir, não
quer ver, quer mesmo o isolamento do medo, do luto antecipado. Ou um montão de outras
coisas que passa pela cabeça e ninguém sabe nem nunca vai saber. Porque nunca
entenderia, a menos que passasse por isso.
Compreendo a todas e por compreendê-las gostaria de poder
chegar mais perto, dizer que é possível. Fica-se, sim, após o câncer, com uma
nuvenzinha negra de medo acima da cabeça, mas é preciso uma dose cavalar de
coragem para pensar na morte como fato, que ocorrerá a qualquer dia, a qualquer
momento, de câncer ou não, e que por isso o que importa agora é viver. Seja como
for.
Estou inteira há quase quatro anos pós-tratamento, fiz e
faço coisas incríveis. Nunca deixei de fazer planos, programar meus passos,
pensar no que seria depois de tudo aquilo. Até onde vai durar? Não sei. Quem
não teve doença alguma também não sabe e está aí, tocando o barco.
Às poucas mulheres carecas que vejo na rua, queria dizer
estas palavras, que podem servir ou não, que podem ser aceitas ou não, que
podem ser encaradas como um blá-blá-blá ridículo, “você não sabe o que diz, não
está no meu lugar.”. É, não estou.
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