29 de novembro de 2010

Mondo Cane

Por: Manoela Sawitzki

Eles estão por toda parte: coabitando calçadas, atravessando ruas, subindo e descendo por elevadores, diante do supermercado, ao lado da mesa do bar, no parque, na praça, na orla, na serra, no subúrbio. Interioranos e cosmopolitas, muitas vezes são espelhos, perfeitas réplicas quadrúpedes de seus duplos bípedes, projeções de carências, reflexos tanto da ternura e do zelo quanto do egoísmo. Magros, gordos, baixos, altos, negros, brancos, miscigenados, pobres, classe média, emergentes e ricos, silenciosos ou tagarelas, dóceis ou neurotizados. Uma olhada mais atenta sobre a população canina da vizinhança e você pode aprender muito sobre a natureza humana.

Há os que frequentam salões de beleza com mais assiduidade que eu, cuja ancestralidade selvagem é peremptoriamente soterrada sob orelhas em formato de pom-pom, sapatinhos cor de rosa, unhas bem feitas, florzinhas coladas à testa, capa de chuva e fragrância Chanel n.º 5. Os programados para serem brutamontes enfezados. Os simpáticos que passeiam pela praia ostentando carcaças de coco presas entre os dentes como se fossem o maior dos troféus. E os adoráveis, mesmo quando mancos e desdentados.

Dificilmente olho para qualquer um deles sem me lembrar de Tabaco. Devia ter mais ou menos 10 anos quando vi aquele filhote de vira-lata cor de caramelo debaixo do fogão à lenha de uma vizinha de minha avó. Soubemos que ele sofria de maus tratos e quisemos adotá-lo. Na viagem de volta para casa me sentia a mais afortunada das afortunadas olhando para aquela criatura peluda infestada de pulgas, magrela e barriguda que dormia pesado sobre um trapo velho no porta-malas da Belina do meu pai, como se soubesse que estava a salvo. Meu primeiro cachorro.

Adulto, continuou baixinho, magricela e boa praça, e logo se revelou dotado de uma natureza livre e indomável. Embora tivesse um pátio enorme para explorar, se entediava fácil e se dedicava a elaborar os planos mais engenhosos por algumas horinhas na efervescência do bairro. Pulava janelas, abria portas, destravava trancas, se espremia entre grades, contornava obstáculos, disfarçava quando alguém aparecia. E ia. Não tínhamos a menor dúvida de que, mais cedo ou mais tarde, iria. Na maioria das vezes voltava por conta própria, poucas horas depois e esperava sobre o muro da casa como uma esfinge, ou deitado diante do portão, até que aparecesse alguém para abri-lo. Em outras, demorava mais e chegava lanhado, mordido ou atropelado. Invariavelmente voltava com mais pulgas e menos dentes. Com cara de vítima, se deixava tratar e curar e sossegava no cativeiro por algumas semanas, sem qualquer sinal de rebeldia. Pensávamos: dessa vez ele sossega. Porém, não tardava até que o clamor das ruas o convocasse. Tabaco tinha carinho, casa, comida, um gramado considerável e um pomar inteiro para demarcar, mas era mais forte que ele.

Até que um dia, desapareceu e não voltou. Meu pai anunciou no rádio que quem o encontrasse receberia recompensa e semanas depois o telefone tocou. Tabaco passou mais dois anos, ou menos que isso, entre nós até o próximo sumiço. Dessa vez para nunca mais. Anos mais tarde, soube o que de fato aconteceu: alguém fora responsável por ambos os sumiços. Alguém que colocou um cachorrinho gente-fina dentro de um carro e o levou para um bairro distante para que não voltasse.

Quando era muito pequena, tivemos um cão da família envenenado, e a imagem da agonia daquela morte, a que assistimos impotentes, me assombra até hoje. Assim como o sumiço definitivo de Tabaco. Jamais vou entender quem é capaz de fazer algo assim. Da mesma forma sempre me parecerá incompreensível e injustificável quem se dá ao trabalho de comprar ou adotar outro ser vivo para amarrá-lo num canto qualquer, ou deixá-lo sob o sol escaldante numa varanda minúscula, como é o caso de alguém de minha vizinhança. Todos os dias ouço os apelos daquele enorme labrador enquanto olha para dentro do apartamento através do vidro e me pergunto por quê. No entanto, tenho certeza que quando alguém se lembra de acolhê-lo, ainda que por alguns minutos, ele prontamente lhe abana o rabo e lhe lambe as mãos, em profunda gratidão. Da mesma forma que Tabaco, desprovido de rancores, mais crédulo e afetuoso que qualquer um de nós, saudaria alegremente o seu sequestrador, se ele lhe chamasse para outra viagem sem volta.
.

Nenhum comentário: