Quando era jovem, na hora de decidir se faria um curso
técnico que satisfizesse minha vontade ou a vontade de minha mãe, optei por
ela. E lá naqueles anos, em que me atrevi a ser Técnica em Enfermagem, quiseram
me convencer que se seguisse por estas veredas deveria me tornar fria,
insensível ou cega. Creio que esse foi um dos motivos que me empurraram rápido
para fora da rotina hospitalar. Quando tentaram me forçar a virar a noite
espetando braços, pernas e cabeças de recém-nascidos, para que recebessem
transfusão de sangue, já estava no último ano do curso de Jornalismo e - amém -
me chamaram para um estágio.
Claro que na profissão de jornalista não me livrei completamente
das próprias dores por assistir as dores alheias. Incontáveis foram as vezes em
que quis perguntar a uma mãe se precisav a
de algo que pelo menos abrandasse seu sofrimento, ao invés de me endurecer e
proceder à entrevista. Sofri retaliações e achincalhe por me permitir o baque
emocional, após dar de cara com um corpo longe de sua cabeça num acidente. Não
dá pra esquecer aquele rosto ali na pista, de olhos abertos, como se me mirasse
a pedir socorro.
Aprendi cedo que não posso mudar o mundo, portanto não devo
me corroer pelo que não tenho alcance necessário para resolver. Mas não dá para
ficar indiferente a fatos e imagens que compõem o dia a dia por aí e que
banalizamos, talvez até mesmo por autodefesa. Viram-se as costas para o menino
dormindo na calçada, na chuva; viram-se as costas para os animais abandonados
doentes; viram-se as costas para um velho que esmola na rua; viram-se as costas
para a mãe com os filhos no colo; viram-se as costas para a criança que cedo
entra para o crime. Está lá, tudo longe, lá no morro. “Deixa tocar minha vida
por aqui.”
Vi um homem no chão, no acostamento de uma estrada, na
cidade grande, onde a violência está sempre ao lado. Contorcia-se de dor, a
debater as pernas, com sangue a lhe escorrer da boca e da cabeça; da mão
esquerda, nada havia mais, a não ser uma massa de carne vermelha esponjosa. No
meio da rua, um agente de trânsito municipal tentava controlar o tráfego;
devagar, meu ônibus simplesmente passou. Não havia mais ninguém no local, além
do homem da prefeitura e do outro, caído.
Bandido? Vítima? Pai de família? Arrimo de mãe e irmãos?
Traficante? Alcoolista? Ladrão? Trabalhador? Assassino? Menor de idade? Doente
mental?
Atropelado? Baleado?
E os poucos que olham o fazem rápido, distraidamente, na
certa já com a frase pronta na cabeça “Um bandido a menos”. No entanto, não é
assim para todos. Bandido - se for mesmo - tem mãe ou filha ou mulher ou pai,
sei lá mais quem. Tem mais gente por trás do crime que sofre e é tão vítima
quanto qualquer outra aqui embaixo, a beira-mar. A questão mesmo é o quanto o
ser humano é capaz de não dar a menor atenção, a passar batido e mal olhar, a
naturalizar qualquer fato que deveria ser tratado como minimamente incomum.
Aqui, no aconchego do pouco de segurança que ainda consigo
desfrutar no interior, penso naquele homem. Não cheguei a este ponto máximo de
banalização ao qual o povo da cidade grande chegou, porque tem que seguir com a
vida adiante, porque precisa trabalhar e tentar continuar sobrevivendo, “porque
é assim mesmo, ora!”. Não sei dizer como me comportaria se morasse lá, com
aquele cotidiano em que beleza e tristeza convivem quase sem se respingarem
(será?). Este texto é pra confirmar a mim que pelo menos até agora, depois de
mais de vinte anos de jornalismo ,
não pude me tornar fria e insensível, embora a vida, os chefes e os amigos
tentassem me ensinar. Também não sei o que fazer com isso, mas é o que sinto,
por enquanto.
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Um comentário:
Eu não fico chateado, eu fico triste, profundamente triste com a maldade humana. E fico a pensar como pode o ser humano ser capaz de tomar tais atitudes, matar é uma coisa muito séria, matar é seríssimo. E é sério no mau sentido. Eu não queria que fosse assim, eu não entendo, eu não me conformo, eu não posso mudar o mundo. Eu não posso ser feliz num lugar onde não há respeito, onde não há fraternidade, onde não há amor. Eu simplesmente não posso. E não posso porque não consigo, porque não tenho permissão, porque não tenho poder, porque sou mesquinho, covarde, punk, asqueroso, burro, nojento, vulgar. Todas as cobras são perigosas, a diferença é que umas tem veneno e outras não. Eu acho que eu não tenho veneno, posso ser perigoso mas não a ponto de matar, o que é isso? Eu nunca vou conseguir entender, a violência é o meu calcanhar de Aquiles. Mas estou disposto a seguir em frente, eu quero pagar o preço de toda essa babaquice, essa caretice, essa eterna falta do que falar. Eu quero sempre mais.
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