9 de novembro de 2010

Entre saias, vestidos e recordações

Não sou do tipo desprendida, mas também creio não ser uma materialista empedernida. Não costumo guardar coisas, juntar tralhas, me apegar a objetos, roupas e afins. Tenho a meu favor uma casa minúscula, onde não há sequer espaço entre o topo do guarda-roupa e o teto. Quartinho de despejo, então, nem pensar. Por isso, jogar coisa velha fora, ou mandar para a reciclagem, ou doar é fácil. Para cada sandália nova que entra na sapateira, uma velha tem de sair.

Periodicamente faço uma faxina completa em gavetas e armários (da cozinha, inclusive) e encaminho sacolas para centros espíritas ou outras instituições. O que não é possível doar dispenso no saco plástico transparente que o caminhão da coleta seletiva recolhe semanalmente.

Porém, quando se trata de objetos pessoais, coisas minhas, o motorzinho das lembranças até puxa cada uma das histórias vividas ali. Mas, difícil mesmo é abraçar a missão de encontrar destino para os pertences de uma pessoa querida que já mudou para o novo endereço, o espiritual. E quando é pessoa muito próxima, então, só muita prece para suportar a triagem de peça por peça, seguida da decisão de 'o que vai para aonde'.

Diferente de lembrar das histórias de cada um dos meus objetos é deixar a mente vagar por anos de vida juntas, nos quais telefonemas e torpedos eram trocados para perguntas do tipo 'tô na sapataria diante de uma sandália linda, toda trançada, mas não sei se compro. é caríssima!’. E cá estou, diante da tal sandália, de cuja compra participei à distância.

O último vestido de festa comprado foi desenhado por mim, num pedaço de papel, na mesa do trabalho, enquanto ela o descrevia, passo a passo, para me fazer entender como ela estaria no casamento. E o que eu achava, como sempre. Muitas das bijouterias ela mesma fazia, principalmente os colares. Portanto, ao olhá-los agora ainda posso vê-la sentada à mesa de vidro da sala, com aquele minúsculo alicate na mão, emendando bolinha.

Histórias. Muitas histórias revividas em uma semana de convívio com roupas, calçados, bolsas, acessórios, recordações. Os cabides ficaram por cinco dias espalhados pelo meu quarto. Dormia em meio a saias, vestidos e camisas coloridos, todos exalando o cheiro que jamais será esquecido. O estojo de maquiagem. O anel de formatura. O relógio de pulseira vermelha. Os brincos de bolotas. A bolsa verde. A bolsinha de festa, de tecido. O sapato que nem foi usado. O porta-joias com a bailarina. O camafeu. Os novos óculos. O casaco que ainda tem a etiqueta da loja.

Quatro meses atrás ela me ligou à tarde. Nos veríamos em poucas horas, numa festa. “Você vai ter uma surpresa quando me vir”. A surpresa está hoje comigo. Uma boina, cinza, preta e branca, faz conjunto com um cachecol igual. São de um tecido peludo, que não sei o nome. Ela sabia que eu gostava e quis provocar a expectativa em vê-la.

Aos poucos tudo vai sendo devidamente separado e encaminhado. E aos poucos, materialmente, ela vai indo embora. Nesses dias de malas abertas pela casa, tive a sensação de tê-la realmente por perto, esperando minhas providências para que se fosse, enfim. E está indo mesmo. As histórias continuarão sendo revividas na memória. Vou ouvir a voz, sentir o cheiro, o afago. E com alguns pertences que escolhi pra mim, ela estará, simbolicamente, fazendo parte do meu corpo, até que nossas almas se reencontrem, um dia.
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6 comentários:

Anônimo disse...

Simplesmente lindo! Beijos carinhosos, AUAD

Wellington Freitas disse...

Simplesmente lindo... Muito tocante, sem mais cometários.

Beijos

Wellington

GIL ROSZA disse...

As coisas tem mesmo esse poder. No imenso oceano temporal, elas bóiam como um ponto de luz marcando momentos que podemos reativá-los na memória, mas não literalmente revivê-los.

Thayra Azevedo ♥ disse...

Lindo. Me inspirou mais a escrever sobre as lembranças que tenho de meu pai. Não pude ler e ficar inerte. Estou a chorar. O mais lindo é que as lembranças ninguém pode torar de nós. As coisas acontecem, mas Deus sempre nos dá um amparo, nos ajuda de alguma forma a viver, e a jamais esquecer os momentos marcantes que algumas pessoas fizeram questão de participar, quando estavam aqui, no mundo material!

RICARDO VILLA VERDE disse...

Emocionante perceber em um texto sentimentos que já senti...
Foi uma boa surpresa descobrir o seu blog...

Ricardo Villa Verde

Kátia Almeida disse...

Fiquei muito emocionada com esse texto. Já tinha lido alguns. Hj vi as fotos do lançamento do seu livro. Vc está muito parecida com ela. Essa semana ao me desligar de vários livros que resolvi dar para amigas(os) que continuam atuando na Psicanálise, andei também remexendo o meu baú de recordações. Peguei dois livros que ela me deu. Lembro nitidamente desses dois momentos. Esses ficam! Não tenho ideia nem de longe do que você e sua família passaram e passam. O tempo ajuda muito, mas até hoje ainda me pego vendo alguém na rua e por segundos achando que é ela. São muitas lembranças. Na última sexta lembrei dela o da todo. Cada experiência ou fato novo que vivencio sinto a tristeza de não poder dividir mais com ela. Não tenho irmã e elegi algumas sinceras amigas para ocupar esse lugar vazio. Ela foi muito cedo!