Moacyr Scliar mescla erotismo e humor em novo livro
Por Elias FajardoO conhecimento que o autor tem das tradições dos hebreus salta aos olhos numa primeira leitura do romance “Manual da paixão solitária”. A este conhecimento, Moacyr Scliar agrega sua maestria na arte de narrar e a capacidade de insuflar vida aos seus personagens, a maioria deles pessoas comuns que passariam despercebidas se o autor não jogasse sobre elas o foco de sua luz, o holofote da criação literária.
O mote do romance é o capítulo 38 do Livro do Gênesis, que trata da trajetória do patriarca Judá, de seus filhos Er, Onan e Shelá e de suas conturbadas relações com a linda Tamar. Er (que, segundo a versão de Scliar, era um homossexual enrustido) não consegue engravidar a sua mulher e acaba se matando. Por ordem do patriarca e para seguir a tradição do levirato, Onan, o segundo filho, casa-se com a viúva, mas prefere ejacular no chão para não engravidá-la e assim passa à história como o inventor do onanismo (que os dicionários atuais registram como masturbação ou coito interrompido, o que são duas coisas inteiramente diferentes).
Ainda segundo Scliar, o verdadeiro teórico e defensor do sexo solitário foi Shelá, o irmão caçula, que, impedido pelo pai de desposar a fogosa Tamar, busca consolo usando as mãos numa caverna escura e apelando à imaginação para transformar a masturbação num sofisticado ritual. Segundo Shelá, masturbar-se é uma espécie de transfiguração, um momento culminante da existência humana. E assim encontramos, reunidos nesta obra, alguns dos ingredientes que informam e constroem uma narrativa romanesca: conflitos familiares, dramas amorosos, inveja, competição entre irmãos, autoritarismo dos pais com relação aos filhos etc. A isso se junta o fato de que Shelá se torna também um escritor solitário, que, oculto na caverna, registra em pergaminho suas paixões, emoções e frustrações. Ele escreve, principalmente, movido por uma tentativa desesperada de atravessar as barreiras e limitações de seu tempo e de ser lido, mesmo que isso ocorra apenas num futuro longínquo. E assim acaba juntando o prazer solitário do sexo às delícias solitárias do ato de escrever, tornando-se um autor à espera de um improvável leitor. Os pergaminhos, abandonados na caverna, serão descobertos muitos séculos depois e analisados por um professor brasileiro, que se apaixona pelo obscuro personagem Shelá.
Scliar já explorou temáticas e situações parecidas em outros romances, entre eles “A mulher que escreveu a Bíblia”, (Companhia das Letras), que ganhou o Prêmio Jabuti de romance de 2000 e se transformou em um espetáculo teatral (em cartaz atualmente no Rio de Janeiro) com Inês Viana no papel-título. Em comum, as duas obras têm o humor cáustico e irreverente e uma linguagem que não se preocupa em apresentar inovações formais, mas escorre límpida e elegante, convidando o leitor ao prazer da leitura.
“Manual da paixão solitária” explora também o erotismo com bastante intensidade. E apresenta, como boa parte dos romances e contos do escritor gaúcho, personagens divididos entre a autenticidade e a conveniência, a paixão e o raciocínio, a obediência e a transgressão, o respeito à tradição e a vontade de tomar seus destinos com as próprias mãos. Destes conflitos entre o indivíduo e as imposições que lhes são colocadas pela família e pela sociedade é que nascem as situações dramáticas mais interessantes de sua ficção.
Texto publicado originalmente no Prosa on Line
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