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Senti falta de infância. Senti falta de ser criança. Doeu a saudade de tempos frescos, de família em casa, pai, mãe, irmãos, primos, do café cheiroso no bule às quatro da tarde e do pão quentinho chegando no cestão de vime do padeiro de bicicleta. Deu aquele aperto no coração ao me lembrar do quintal, da horta, da ameixeira, do galinheiro, do poço com tampa de pedra bem pesada que eu brincava em cima. Saudade dos colos, cuidados, carinhos, inocência.
Nem toda criança teve ou tem o que tive; não viveu a liberdade de ter um quintalzão de terra, brincar na lama, ter uma garnizé de estimação, poder passar um dia inteiro de calor apenas de calcinha, tomar banho no tanque quando se é bem pequena e mais tarde de mangueira, espalhando água por todo lado. Andei de velocípede (alguém sabe o que é isso?), depois tive uma bicicleta. Tinha uma caixinha de bolas de gude, um coelhinho de borracha, e um piano, e uma boneca chamada Katy.
A família passava horas de uma tarde de fim de semana chupando cana, que minha mãe descascava e cortava; todo mundo sentado no quintal, sem pressa. Ou então meu pai mandava minha irmã ir à sorveteria Spumel comprar picolé. E lá ia com um isopor e trazia aquele monte de picolé, cujos sabor e textura ainda me lembro perfeitamente. E a turma era grande. Além dos seis filhos sempre havia um agregado: primo, prima, tia, passando uns tempos. O movimento era grande, divertido, trabalhoso pra minha mãe, que dava conta de tudo sozinha, mas ela também gostava.
Para mim eram tempos muito felizes, pelo menos calmos. Os irmãos mais velhos, adultos ou quase, já ingressavam no mundo das responsabilidades, mas a caçula aqui ainda demoraria a vislumbrar este mundo. Preferia as histórias que eu mesma criava com os móveis da minha casinha: armário, fogão, panelinhas, sofás. A gente criava um mobiliário inteiro de caixas de fósforo, encapado com tecidos variados. Minha mãe fazia roupas para a minha boneca e ela virava uma personagem fashion.
Um dia, com uma colega de infância, plantei uma semente de ameixa amarela (Nêspera). Durante anos acompanhei o crescimento daquela árvore que ficou enorme e acredito que ainda esteja lá. Se não me falha a memória foi o último pé de ameixa amarela que vi. Também não esqueço o sabor e a textura daquela frutinha carnuda de casca peluda e caroços redondos.
Na segunda fase da infância já morava em outra casa. Não tinha um quintal tão extenso, mas a qualidade estava nas árvores frutíferas ao meu dispor. Vamos ver se me recordo de todas: abacate, romã, goiaba vermelha, mexerica, figo, mamão, manga espada, limão e até uma parreira de uva. E mais outra coisa que a casa anterior não tinha: terraço. Levei boas palmadas na bunda por me arriscar a caminhar no beiral. Na calçada havia um fícus italiano (que na verdade é indiano), que com aquelas raízes aéreas era diversão pura quando meu pai não estava por perto.
Deste momento da minha vida de criança em diante, a família em casa começou a diminuir, com os casamentos dos irmãos. E a realidade trazida por aquele mundo que eu não conhecia foi se abrindo diante dos meus olhos. Era a adolescência chegando e com ela todas os compromissos da vida pré-adulta. Já curtia namorico na escola, me preocupava sozinha com a obrigação dos estudos, mas não abandonava minha pequena mobília e minhas bonecas. Tornei-me moça, como se dizia na época, mas queria continuar brincando de queimada e garrafão no meio da rua. Parecia um prenúncio do conflito que viveria em todos os meus dias. Cresci sem querer crescer.
Embora a saudade possa incomodar, pois tais momentos não voltam, é prazeroso lembrar e saber que desfrutei de tudo isso. E agora, três décadas depois, sinto que acontece uma nova transição, como a do início da adolescência, e a percebo por não curtir tanto mais minha família de origem, mas sim, a que criei. Cada irmão está voltado para sua própria família, enquanto outros se foram. É hora de fazer novos esforços, para crescer mais um pouquinho, desta vez sem conflitos, pois a idade já não permite a negação do avanço. Porém, permaneço a desfrutar os quintais das lembranças, pois são eles que mantêm viva a história que vou continuar contando.
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6 comentários:
É minha cronista preferida, infelizmente o que você relata não acontece mais. Vivi estas mesmas coisas que voce, logicamente tirando os detalhes de andar de calcinhas e brincar de bonecas e também tenho saudades.
Saudades estas que me ajudam quando estou para "baixo" e volto a elas para me fortalecer.
Mas, fico pensando, será que os nossos filhos terão este tipo de saudade. Acredite ou não, tive uma sobrinha que pensava que o "leite vinha do saquinho" e o dia que conheceu uma vaca levou um susto.
Ah, que pena destas crianças e jovens.
Beijos
Identifiquei-me com a sua história, obrigada pela viagem...
Realmente é necessário o crescimento constante. Pena, que, às vezes, dói.
Beijos
Qualquer semelhança com minha infância é mera coincidência!! heheh Minha infância é minha melhor lembrança e foi por aí... Bem parecida com a sua!! Me lembro do meu pai, aos domingos (ou sábados, sei lá), pegar sua Variante azul, depois a Brasília (acho que a ordem é essa!!) e encher de crianças no "chiqueirinho" e sair como louco, brincando com a gente..."Ó os porquinhos??" ao que nós respondíamos... "Êêê". Ele começava falando baixinho, quase susurrando e nós íamos respondendo a altura, até que no final ele gritava e nós berrávamos!! hehehe Era muuuuuuuito divertido e engraçado. A gente adorava!!! Na minha infânia não havia shoppings, nem celular, nem internet, nem Mc Donalds ou Bob's em VR. Era nas Lojas Americanas que lanchávamos, ou na sede do Funcionários, que tinha um sundae que até hj me lembro e sinto saudades!!! Não se fazem mais sundaes assim!! É tudo de plástico e self-service!!! Sinto saudade daquelas taças de vidro e daquelas colheres compridas e finas!!!!
Ai que saudades senti das ameixas amarelas...
Tudo a ver a sua infância com a minha. Eu tive ao meu dispor, assim como você, um imenso quintal, o qual compartilhei com inúmeras galinhas, coelhos, cachorro, bananeiras e outras árvores frutíferas. Eu também andava só de calcinha no calor e a vida parecia tão simples. O leiteiro passava pelas casas e deixava um litro de leite fechado com uma tampa de papel alumínio. O seu texto é pura nostalgia de um tempo que nos deixou marcas e também muitas saudades. Foi gostoso fazer essa viagem. bj
Olá Bela Giovana!
Como é doce ler tudo isso que nos traz à memória...
Ler suas crônicas é deixar fluir a emoção de tudo aquilo que não sabemos como exteriorizar...
Obrigada por ser parte da nossa vida...
Bjs no coração!!!
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