14 de junho de 2016

Ouvir histórias

Quem se permite escutar histórias dos outros amealha uma coleção de contos. Casos reais, de gente de verdade, que sente e sofre, e nós, aqui de longe, na maioria do tempo não nos damos conta e, pior, nem queremos saber. O ofício da escrita me põe a ouvir. Quando alguém começa a me dizer algo, interrompo o que estiver fazendo para prestar a atenção. E me deleito com todos os detalhes, me angustio junto, me aflijo.

As pessoas necessitam falar; as pessoas são sós. E no meu exercício solitário de colocar as palavras organizadas em forma de texto são justamente esses inúmeros ‘alguéns’ que me vêm à mente. Como entes invisíveis, que na hora H reaparecem pra me inspirar. A crônica não era esta; o tema era diverso, porém, ao me deparar com a tela em branco pra dar corpo à ideia que tinha na cabeça, as histórias de tantas almas me rodeiam. Fazem um volteio em mim e permanecem aqui. Não consigo discorrer sobre outro assunto.

A arte é que imita a vida. Muito do que se vê em cinema e folhetins nos arrancam as exclamações de sempre: “Isso só acontece em novela!”, “Só podia ser filme!”. A existência humana é mais complexa que qualquer roteiro escrito por uma mente brilhante. E não comumente são experiências felizes ou vitoriosas. Quem dorme em lençóis de cetim e travesseiro de plumas também revela frustrações, infelicidade, traições, perdas, insanidades.

Um relato que ouvi dia desses ficou agarrado na memória, retorna à tona a todo momento. Uma mulher casada, com dois filhos, era surrada pelo marido diariamente. Ele chegava em casa embriagado, ameaçava-a de morte e iniciava a sessão de tortura. Certa vez ela tomou coragem e fugiu com as crianças. O homem a alcançou, levou-a pra casa aos tapas e jurou matá-la e aos filhos, caso tentasse escapar de novo. Ela se foi novamente, mas sem os meninos. Um morreu, pois ainda não havia completado dois meses; o outro foi criado sozinho pelo pai até a adolescência, solto, entre a rua e os bares, e depois acolhido por uma senhora que o educou e lhe colocou regras. Anos depois o homem abraçou uma religião, buscou a mulher de volta e o filho que sobreviveu não a perdoa por ter sido abandonado. Não pode compreender a mãe. Ou ela morreria pelas mãos do marido, ou morreriam todos se fugissem juntos. Hoje mãe e filho são idosos e mal se falam.

Parece ficção, drama da novela das seis, no entanto é uma das milhares de vidas tristes que há por todos os cantos do planeta, que nos fogem ao conhecimento. Não temos tempo pra saber, não podemos nos dar ao luxo da preocupação com a existência alheia. Já temos problemas demais.

Penso nas pessoas que vejo nas ruas. Imagino como são em casa, se têm necessidades, filho doente, mulher ou ex, roteirizo mentalmente a rotina delas e invariavelmente rabisco umas linhas sobre algumas, projeto suas práticas religiosas, se estudam ou não, se vão a festas, se bebem, como comem, como se comportam no banho, como transam, vejo-as mortas. Não por simples morbidez e, sim, porque toda história tem um fim e esse é o final pra todo mundo. Enquanto isso, escrevo.
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