19 de maio de 2016

Sem preconceito, mas, vai que..

Cheguei para a entrevista atrasada, correndo, bufando, e a surpresa foi completa quando encontrei o prefeito deitado dentro do carro, ocupando com o corpo as duas poltronas da frente, a cabeça pendendo para o lado de fora, de óculos escuros, mirando o céu. Mais calmo impossível e nós, trinta minutos depois da hora marcada, constrangidos.

- Bom dia, prefeito, desculpe o adiantado da hora.
- Problema nenhum. Estava aqui admirando o voo solitário de um urubu.
- (?)
- Minha mãe sempre dizia que quando a gente vê um urubu voando bem alto e sozinho, é sinal de notícia boa.

Surpresa de novo. A vida inteira, o que recebemos de informação sobre essa ave é que se trata de um bicho nojento, asqueroso, perigoso, que come lixo e carniça. É feio, tem um andar coxo, muito esquisito, chega a causar certo horror às vezes. Jamais imaginaria a possibilidade de boa coisa a caminho, mesmo sendo apenas superstição.

O encontro com o prefeito aconteceu faz quase vinte e cinco anos e, desde então, passei a observar melhor os urubus. Tentei reverter dentro de mim o preconceito, procurando saber mais sobre esse pobre animal, excluído de qualquer demonstração de apreço, consequente de seus hábitos.

O que mais gera repugnância no comportamento do urubu é sua preferência por carnes em estado de putrefação. Quando não encontra animais mortos, opta pela caça de bichos menores, como alguns roedores, sapos e lagartos. Porém, exatamente por comer animais mortos, é considerado necessário, até mesmo indispensável, por garantir o equilíbrio ecológico, livrando o ambiente de doenças facilmente dissemináveis. Pra piorar a situação do desventurado, ele não pode cantar, pois não possui órgão vocal específico. Portanto, grasna.

Destituída do preconceito, veio a compaixão. Todas as vezes em que vejo um urubu, tenho ímpeto de parar pra olhar. Pude conhecer um bem de perto num sítio, onde rolava um churrasco. A proprietária do local (pasmem!) tinha um urubu de estimação. Caíra no quintal quando filhote, foi tratado, alimentado e ficou. Claro que a única pessoa na festa que não sentiu repugnância pelo animal fui eu (confesso um medinho de me aproximar muito).

Recentemente li uma história em que o personagem narra sua própria morte, atacado por um bando de urubus que invadem o apartamento. A sequência é horripilante, devido aos pormenores do banquete. É mais um ponto a favor da ojeriza contra o animal já tão rejeitado – o autor não poderia, por exemplo, falar em corujas? Elas também comem carne.

E após tantos anos de reforma interior, treinando meu mais carinhoso olhar para os urubus, eis que o inesperado acontece. Ao volante, indo para o trabalho, avisto bem ao longe um solitário em voo alto. “Opa! Bom sinal! Que boa notícia será?”. Logo que me indaguei, ele foi baixando a altitude, ao mesmo tempo em que vinha na minha direção. Em questão de segundos estava à minha frente, forçando as asas para trás, na tentativa de parar e não conseguiu. Entrou embaixo do pneu dianteiro esquerdo, escutei (ou senti) um “crec” e ainda pude ver pelo retrovisor o infeliz estraçalhado na pista. Não contive o remorso: “Eu matei o urubuuuu! Eu matei o urubuuuuuuuu! Meu Deus, eu matei o urubu.”. Superstição ou não, além de chorar de pena do bicho, não deixei de cismar com um possível mau presságio; afinal, se o urubu voando alto prenuncia coisa boa, prefiro nem pensar no que possa significar esse mesmo urubu sendo assassinado por mim.
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2 comentários:

Lincoln disse...

Hahahah!
Que azar!

Também nem quero pensar!

ótima história.

Lincoln

Luiza Almeida disse...

Que bom te ler, Giovana.
Amei a crônica.Esse urubu cometeu suicídio, tadinho!
Ele deve ter ficado desesperado pq se não terá quem lute pelos humanos que sofrem preconceito, quem lutará por ele, uma ave de rapina?