Onofre foi
enterrado às nove horas de uma manhã fria e chuvosa. Alberto, ante o jazigo em
que deixaria para sempre o amigo, sentiu a tristeza comprimir o peito. Não pela
separação sem retorno, mas pela despedida em dia tão feio. “Onofre merecia
partir com céu claro, de azul límpido, sol manso e brisa perfumada”, pensou. Contudo,
o destino escolhera a atmosfera densa, cinza, a chuva fina e constante.
No cemitério eram
somente Alberto, Celeida, a dona do asilo, Karina, a psicóloga, e os coveiros.
Já sem força para andar longa distância, deixaram-no ir de carro até a
penúltima aleia, no cantinho à esquerda, onde ficava o mausoléu da família.
Onofre fora o remanescente. Alberto acompanhara o sepultamento da mãe dele,
única pessoa entre os familiares que conheceu. O amigo se foi mais de vinte
anos depois.
- Não há mais
ninguém que vá ocupar lugar aqui – disse Alberto para si.
Desceram do
carro com cuidado; a psicóloga ofereceu-lhe o braço. Com os joelhos já tão
fracos, o paralelepípedo molhado era convite ao chão. Sem choro, preces ou
qualquer discurso de adeus, apenas os olhares de tristeza e saudade, viram
arriar o caixão de luxo pago com antecedência pelo próprio Onofre. Queria sua
derradeira casa “linda e confortável”.
Assim foi.
Alberto
divagava. Tentava compreender os entrelaces da existência, que levaram Onofre à
total solidão, embora tenha feito de seus dias os melhores que pode, por si e
por quem privara da companhia dele. Nenhum parente, nenhum outro amigo, nenhum
sobrinho, ninguém. E, no entanto, ali estava representado o maior amor dedicado
a um ser, amor claramente expresso nos olhares de quem teve a divina graça de
conviver com Onofre. Unidos por sentimento igual, permaneceram juntos -
Alberto, Celeida e Karina - flores nas mãos, a ver cada placa sendo assentada,
o cimento a cobrir as frestas; o assentamento da lápide em mármore, que Onofre também
mandara fazer com antecedência.
“...como
um bicho, simplesmente,
De um
amor sem mistério e sem virtude
Com um
desejo maciço e permanente.”
Onofre.
*12.01.1931 / +14.07.2017
Sem sobrenome
e sem foto. Não adiantaram os insistentes rogos de Alberto e das responsáveis
pelo asilo. Ele não arredou o pé.
- Parem de
tentar me convencer. Quero assim e pronto – teimou.
Jamais
explicou seus motivos. O mármore ficou à espera, guardada dentro do mausoléu.
Poderia ter mudado de ideia e encomendado outra. No entanto está lá, do jeito
que quis, sem sobrenome e sem foto.
- Pra que foto,
Alberto? Quem vai lá me visitar? Você? Vai querer ir ao cemitério pra olhar
minha cara séria naquela moldura antiquada pregada numa sepultura? – perguntou
ao amigo, sorrindo.
Tampouco
entenderam os três versos no excerto do poema que escolhera para o epitáfio,
sem citar a autoria. Onofre era desse jeito. Um jeito só dele.
A chuva fria
não deu trégua. Retornaram ao asilo juntos, pois era missão de Alberto cuidar
dos objetos pessoais do amigo e queria fazê-lo logo. Outros residentes os
aguardavam na grande varanda do casarão; Alberto sentiu certa curiosidade nos
olhares, como se quisessem saber como estava o único e leal amigo de Onofre,
que morava fora e o visitava religiosamente a cada quinze dias.
Alberto estava
bem. Sempre pensara que não se deve esperar do futuro a partir de certa idade. Dos
oitenta e seis anos de Onofre, os últimos vinte e três passara no asilo, que
todos chamavam de vila, a Vila Primavera. Estabeleceu que seria sua morada
definitiva após a morte da mãe, a quem cuidou até o fim. Não teve esposa, nem
filhos. Do resto da família, há muito não tinha notícias. Alberto completara
oitenta e quatro poucos meses antes do amigo. Viúvo, morava sozinho num
apartamento no mesmo prédio que a filha. Além dela, tinha Onofre.
Diante das
caixinhas e pequenos pacotes que colocara com cuidado em cima da cama e da escrivaninha,
suspirou fundo antes de começar. “Não há para quem deixar nada, é preciso
decidir o que fazer”, pensou. Em suas visitas, notara a organização da pequena
estante e jamais pensou que fosse ele a se ocupar da vida pessoal de Onofre,
trancada naquelas caixas. A filha de Alberto o aconselhou a não assumir tal
responsabilidade, o pessoal do asilo ficou em dúvida, por motivo comum: a
idade. No entanto, Alberto fez questão.
- Ele só tinha
a mim - suspirou de novo.
Recordações retornaram
à mente em cada foto, em cada peça de roupa, cartas, cartões de Natal, de
aniversário, bilhetes, bilhetes. Receitas médicas, exames, mimos recebidos
pelas enfermeiras, alguns poucos livros. O mais novo adquirido da escritora que
viera palestrar para os residentes meses atrás.
Alberto
recostou na cabeceira da cama e respirou fundo. Ao passo que saiu o ar, deixou caírem
as lágrimas. Cruzou os braços no peito, como em um abraço, e largou as palavras
num sopro.
- Tanta coisa
por dizer... Mas que não seriam ditas, ainda que pudesse fazer voltar o tempo.
Enxugou os
olhos nas mangas da camisa, recolocou os óculos e se levantou para abrir o
armário. Conferiu as gavetas, para ver se havia algo mais que roupas, quando
deparou com uma caixa pequena, de madeira. Alberto levantou a tampa e dentro
encontrou outro pacote de fotografias. Ali estavam todas as lembranças: desde o
dia em que se viram pela primeira vez no baile de carnaval, quando estava com a
família no clube e encontrou Onofre no balcão do bar, até reuniões e festas em
casas de ambos. Eram dezenas de registros, guardados com esmero e anotados no
verso com data e local. No fundo da caixa, um envelope lacrado: “Pra Você”. O mundo
parou em torno, enquanto Alberto leu:
Rio
de Janeiro, 1º de março de 2016
Alberto,
Não
sei por que lhe escrevo, se não pretendo lhe entregar esta carta. Talvez pela
urgente necessidade de conforto, neste momento. Jamais teria coragem de dizer o
que vem por estas linhas. Quem sabe um dia esta lhe chegue em mão e não estarei
em corpo para vexá-lo com tamanha loucura. Tanta foi minha covardia que não
pude olhar-lhe com a verdade do que sinto, não soube usar da voz para
confessar-me. Agora que recorro às palavras traçadas, vejo-me incapaz de expressar
meu mais profundo desejo. Portanto, escolhi os versos de Vinícius, que tantas
vezes repeti serem meus preferidos.
Soneto do Amor Total
Amo-te tanto, meu
amor… não cante
O humano coração
com mais verdade…
Amo-te como amigo
e como amante
Numa sempre
diversa realidade
Amo-te afim, de um
calmo amor prestante,
E te amo além,
presente na saudade.
Amo-te, enfim, com
grande liberdade
Dentro da
eternidade e a cada instante.
Amo-te como um
bicho, simplesmente,
De um amor sem
mistério e sem virtude
Com um desejo
maciço e permanente.
E de te amar assim
muito e amiúde,
É que um dia em
teu corpo de repente
Hei de morrer de
amar mais do que pude.
Do
seu,
Onofre.